sábado, 28 de setembro de 2013

BRÁS CUBAS - Machado de Assis

Personagens que são a cara do Brasil


Galeria Machado
O Bruxo do Cosme Velho empresta cores, leves e sombrias, com que se pintou o fim da monarquia e o início da república
 
POR HÉLIO SEIXAS GUIMARÃES
 
A GLÓRIA PÓSTUMA DE BRÁS CUBAS
 
Brás Cubas é um legítimo representante da fina flor da elite brasileira do século XIX. Bem nascido, relativamente culto, refinado, elegante, partícipe do que havia de mais sofisticado no grand monde oitocentista, na sua outra face ele é voluntarioso, sovina, vingativo, preconceituoso, venal e egoísta, monstruosamente egoísta.
Desde cedo já dava mostras da índole perversa, quebrando a cabeça das escravas que lhe negavam doce, ou montando e vergastando o moleque Prudêncio, que fazia de cavalo. Aos cinco anos, já ostentava o apelido de "menino diabo".
Fruto de uma criação permissiva, Brás Cubas cresceu "naturalmente, como crescem as magnólias e os gatos". Eis a fórmula da educação familiar: "Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel as pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos".
Não podia dar em coisa muito diferente esse Brás, fruto de uma família que renegava a origem modesta de Damião Cabus, um fabricante de cubas e barris, para associá-la a um certo herói nas jornadas da África, que teria arrebatado como prêmio por suas façanhas trezentas cubas aos mouros. Tudo forjado pela imaginação do pai de Brás Cubas, que conjugava, sem contradição aparente, a imagem de bom caráter, varão digno e leal com ímpetos de farsante. "Mas quem não é um pouco pachola nesse mundo?", pergunta-nos Brás, justificando o pai, justificando-se e fazendo-nos de comparsa.
Do pai, sabemos que Brás herdou principalmente a fatuidade. Da mãe, "senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração", guardou uma sombra de melancolia. Do restante da família, não lhe chegou coisa melhor do que a vulgaridade, o amor das aparências, do arruído, a frouxidão da vontade, o domínio do capricho.
Dessa terra e desse estrume é que nasceu Brás Cubas, no dia 20 de outubro de 1805. Os tios prognosticavam um futuro Bonaparte, ou um cônego; o pai, um porvir brilhante, fosse no que fosse: naturalista, literato, arqueólogo, banqueiro, político, ou até bispo, "uma vez que fosse um cargo, uma preeminência, uma grande reputação, uma posição superior". O grande futuro não veio. Veio o talento imensurável para viver a vida tirando dela o melhor proveito para si, sem fazer caso dos outros: "afeiçoei-me à contemplação da injustiça humana, inclinei-me a atenuá-la, a explica-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das circunstâncias e lugares".
Ainda na juventude, Bras apaixonou-se por Marcela, espanhola de vida fácil, aquela do amor que durou quinze meses e lhe custou onze contos de réis. É a primeira de uma série de relações quantificáveis e descartáveis do nosso herói bem colocado na sociedade, na vida _ e também na morte - , e a primeira a fazer soar o alarme dos cuidados paternos. Temerosos do futuro, o pai envia-o para estudar em Coimbra, onde os filhos das famílias brasileiras realmente abastadas viravam bacharéis. Em Portugal, Brás ganha fama de folião, tornando-se "um acadêmico estróina, superficial, tumultuário e petulante, dado às aventuras, fazendo romantismo prático e liberalista teórico". De lá, traz o título de bacharel, junto com o comichão de acotovelar quem lhe atrapalhasse o caminho.
De volta ao Brasil, por ocasião da morte da mãe, o pai fez o que um pai devia fazer a um fidalgo: arranjar-lhe uma candidatura para deputado e uma noiva. Entre o plano e a execução, surge Eugênia, a flor da moita, por quem Brás Cubas teve um breve estremecimento e as primeiras "cócegas de ser pai". Brás logo descarta a pobre moça, não sem antes exercer todos os requintes da sua crueldade diante da menina mal nascida... e coxa. No caminho de Brás Cubas, o principal obstáculo será mesmo o Lobo Neves, político em ascensão, que num só golpe lhe arrebata a deputação e a noiva, Virgília.
Mas a fresca e juvenil Virgília retornará, já casada, aos braços de Brás Cubas, para viver com ele um longo affaire. Numa vida inteiramente marcada pela inconsequência, inconstância e descontinuidade, a relação adultera com Virgília será a grande realização de um homem com a "paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas". Ironicamente, a paixão será vivida às escondidas, numa modesta casinha da Gomboa, com a alcovitagem da miserável Dona Plácida, comprada por Brás em espécie. Brás entende e manipula como poucos o valor moral do dinheiro.
Seu grande objetivo na vida, no entanto, é a fama, a nomeada, a celebridade. Para isso, fundou um jornal, que buscava aplicar à política os princípios do Humanitismo, o sistema de pensamento idealizado por Quincas Borba, o filósofo louco de Barbacena. Seis meses depois, a folha morreria sem deixar saudade ou leitores. A vida parlamentar de Brás Cubas também reduziu-se à proposta da diminuição em alguns centímetros, do cumprimento da barretina da Guarda Nacional. A proposta ridícula custou-lhe o sonho ministerial.
Já no final da existência, tenta atingir a glória com a invenção do emplasto Brás Cubas, "um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade". Um golpe de vento pôs fim à tentativa de alcançar a tão sonhada glória. Brás Cubas pega uma pneumonia e morre em 1869, aos 64 anos, deixando, para além do legado de uns trezentos contos, o famoso balanço:
"Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida, nem a semi-demência do Quincas Borba. Somadas umas cousas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve mingua nem sobra, e consequentemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: _ Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria".
Já morto, Brás Cubas torna-se autor de suas memórias póstumas, derradeira tentativa de atingir a glória e o reconhecimento que não obteve em vida. Glória e reconhecimento que nós, leitores, somos constrangidos a lhe atribuir, por obra da grandeza e perversidade de Machado de Assis.

(FONTE: Revista Entre Livros - Edição Especial de Fim de Ano, Ano 2, Nº 20, páginas28-29)    
 

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