quarta-feira, 28 de agosto de 2013

PERSONAGENS QUE SÃO A CARA DO BRASIL

CECI E PERI, O ADVENTO DA BRASILIDADE

José de Alencar
POR NELSON SCHAPOCHNIK
Escrito e publicado sob a forma de folhetins para o Diário do Rio de Janeiro entre 1º de janeiro e 20 de abril de 1857, o romance O Guarani foi comprado e editado no mesmo ano pela livraria do Brandão.
José de Alencar deixou registrado o ritmo de trabalho frenético que marcou a escrita desta obra: "O meu tempo dividia-se desta forma. Acordava por assim dizer na mesa de trabalho e escrevia o resto do capítulo começado no dia antecedente para enviá-lo a tipografia. Depois do almoço entrava por novo capítulo, que deixava em meio. Saia então para fazer algum exercício antes do jantar no Hotel de Europa. À tarde, até nove ou dez horas da noite, passava no escritório da Redação, onde escrevia o artigo editorial e o mais que era preciso".
Tal esforço parece ter sido recompensado, pois aos 27 anos José de Alencar obteve um retumbante reconhecimento pelo público, em que pese o silêncio da crítica.
O testemunho de Visconde de Taunay fixava o sucesso do romance na cidade de São Paulo: "Quando chegava o correio, com muitos dias de intervalo então reuniam-se muitos estudantes numa república em que houvesse qualquer feliz assinante do Diário do Rio para ouvir absortos e sacudidos de vez em quando por elétrico frêmito, a leitura feita em voz alta por algum deles. .. E o jornal depois era disputado com impaciência e, pelas ruas, se viam agrupamentos em torno dos fumegantes lampiões da iluminação pública de outrora - ainda ouvintes a cercarem, ávidos de qualquer improvisado leitor".
O Guarani foi o primeiro romance de fôlego produzido por José de Alencar e dá início ao projeto de invenção/fundação de uma literatura brasileira autônoma. De maneira metafórica, a obra enuncia o advento da brasilidade, encarnada na submissão do índio aos desígnios do colonizador europeu. Curiosamente, nenhuma indicação sobre o papel dos negros na formação social brasileira é mencionada no texto.
Na realização deste projeto simbólico, simultaneamente ideológico e estético, o escritor procurou tecer um cruzamento entre referências históricas concretas e a liberdade da criação ficcional. Sobre a forma épica adotada no romance, Alencar escreveu mais tarde: "Representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura, e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido. (...) É a gestação lenta do povo americano, que devia sair da estirpe lusa, para continuar no Novo Mundo as gloriosas tradições de seu progenitor."
A estrutura do romance se aproxima daquela verificada nos ritos de passagem. a ordem da civilização portuguesa deve ser destruída, para que renasça a nação brasileira. Desse modo, o primeiro momento aborda a descrição da civilização representada pelos domínios de D. Antônio de Mariz, fidalgo português, que instala, nos fins do século XVI, uma fazenda às margens do rio Paquequer, mantendo fidelidade absoluta ao projeto colonizador da coroa portuguesa, submetida naquele período ao domínio espanhol.
O segundo momento, marcado pelo ataque dos Aimorés, destrói a esperança de uma possível sociedade portuguesa no solo brasileiro. Por fim, o terceiro momento é o do renascimento, a união de Ceci e Peri. Sozinha no mundo, Ceci se recusa a ir para o Rio de Janeiro após a destruição dos domínios de seu pai. Ela prefere ficar com Peri.

O final é aberto, sugerindo a fusão de europeus e índios cristianizados e submissos como a fundação da nacionalidade brasileira: "O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o voo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte".
A aventura de Ceci, loura, casta, diáfana e muitas vezes identificada com a Virgem Maria, e de Peri, o "bom selvagem", corajoso chefe da nação dos goitacás que abandona o seu povo para servir a sua senhora, foi apropriada por diferentes registros culturais: da tradição popular das feiras que negociam folhetos e cordéis   aos palcos dos teatros frequentados pelos setores mais abastados que iam assistir às récitas da ópera de Carlos Gomes, passando ainda pelo cinema e pelas novelas.
Ou ainda pela divertida marchinha de Lamartine Babo, que embalou o carnaval de 1934. Sob o título de "História do Brasil", mais uma vez Ceci e Peri ajudavam os brasileiros a compreender a sua própria identidade. 

(Fonte: Revista Entre Livros - Edição Especial de Fim de Ano - Ano 02, Nº 20)

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